| Uma exposição bíblica sobre a história de Raabe, em Josué 2: 1 – 21.
| Por Linaldo Lima [1]
Deus tem prazer em contrariar as expectativas humanas. Ele exalta o humilhado, escolhe os rejeitados e transforma o marginal em testemunha de sua glória. A história de Raabe, registrada em Josué 2, é uma das mais impactantes ilustrações da graça soberana de Deus no Antigo Testamento. Uma mulher cananeia, prostituta em Jericó — cidade marcada para destruição —, torna-se uma heroína da fé e ancestral do Messias. Como explicar isso, senão pela soberania divina?
Neste artigo, queremos realizar uma exposição exegética e teológica da história de Raabe à luz da perspectiva reformada, destacando o mover da graça de Deus em sua vida, seu papel tipológico que aponta para Cristo, e suas implicações práticas para os dias de hoje.
1- O Contexto da Fé de Raabe (Js 2.1-11)
Raabe entra na narrativa bíblica quando Josué envia dois espias à terra de Canaã, especificamente a Jericó. Eles se hospedam na casa dela, e logo o rei da cidade envia soldados para capturá-los. Raabe, porém, os esconde e mente para os soldados, enviando-os para outro caminho.
No versículo 9, Raabe professa o seguinte: “Sei que o Senhor vos entregou esta terra, e que o pavor que vos acompanha caiu sobre nós…” (Josué 2.9).
A palavra usada aqui para “Senhor” (YHWH) é o nome pessoal do Deus de Israel, indicando que Raabe não estava apenas temendo, mas reconhecendo a soberania do Deus verdadeiro. Segundo Matthew Henry, “essa fé de Raabe foi extraordinária, pois ela creu antes que visse qualquer milagre e sem ser ensinada por profeta algum” (2005). Para João Calvino, essa fé é fruto direto da eleição divina: “A fé não nasce de esforço humano, mas é o resultado da eleição secreta de Deus, que revela a si mesmo a quem quer, mesmo aos mais improváveis” (2010).
2- A Ação da fé que opera pelo amor (Js 2.12-21)
A fé de Raabe não foi passiva, mas completamente ativa. Tiago destaca que ela justificou sua fé pelas obras, ao proteger os espias: “Igualmente, não foi também Raabe, a meretriz, justificada pelas obras, quando acolheu os emissários e os fez sair por outro caminho?” (Tiago 2.25).
Essa é a evidência de uma fé viva, que age em conformidade com o amor e a confiança no Deus vivo. Ela não apenas creu; ela arriscou sua vida por esse Deus. Conforme Herman Bavinck, “a fé verdadeira envolve entrega e obediência, como expressão de uma confiança pessoal na graça revelada” (2020).
3- A Graça soberana que redime os rejeitados
Raabe é mencionada na célebre lista dos heróis da fé: “Foi pela fé que Raabe, a meretriz, não morreu com os incrédulos, pois acolheu em paz os espias” (Hb 11.31). Ela se destaca como a única mulher gentia naquela lista, e ainda com o título de “meretriz”, como se Deus quisesse deixar claro que a sua graça não é limitada por nossos rótulos.
Comentando isso, Martyn Lloyd-Jones declara: “A história de Raabe nos mostra que não há pecado que a graça de Deus não possa perdoar, e que não há condição social que impeça o chamado eficaz do Senhor.” (2004).
A teologia reformada vê nesse relato a doutrina da graça irresistível: Deus atraiu Raabe de modo eficaz, dando-lhe olhos para ver, ouvidos para ouvir e um coração para crer — exatamente como em Ezequiel 36.26-27.
4- Raabe – Uma sombra da Igreja e de Cristo
Ao refletir sobre essa linda história, podemos dizer que Raabe representa:
- A Igreja entre os gentios: Um povo antes estrangeiro e apartado da promessa, agora integrado pela fé (cf. Ef 2.12-13).
- Um tipo de Cristo: Assim como ela intercede, acolhe e oferece livramento sob o fio escarlate, Cristo é aquele que intercede por nós e nos cobre com seu sangue (cf. 1 Pe 1.18-19).
- O fio escarlate: é um apontamento simbólico do sangue do Cordeiro (cf. Êx 12.7; Ap 7.14).
APLICAÇÕES PRÁTICAS.
Consigo enxergar, nessa história, duas aplicações latentes e escancaradas que enchem os nossos corações de alegria, a saber:
(1) Deus usa os improváveis: Raabe era improvável segundo os padrões humanos, mas Deus a usou para cumprir seu propósito redentivo.
(2) A fé que Deus gera produz transformação e ação: A fé de Raabe produziu ação e transformação — fé viva e não meramente intelectual.
CONCLUSÃO
A história de Raabe nos confronta. Ela era prostituta, gentia, marginalizada — e tornou-se crente, intercessora, ancestral do Messias. Deus escolheu aquela mulher para ser um vaso de honra. Você pode pensar que está longe demais, que seu passado o condena ou que você não tem valor. Mas veja Raabe. Deus está buscando os “improváveis” para mostrar a riqueza da sua misericórdia.
Essa história é um testemunho de que “onde abundou o pecado, superabundou a graça” (Rm 5.20). Em Cristo, todos os “Raabes” podem encontrar redenção, inclusão e propósito.
REFERÊNCIAS:
BAVINCK, Herman. Dogmática Reformada: Doutrina de Deus. São Paulo: Cultura Cristã, 2020.
CALVINO, João. Comentário de Josué. São Paulo: Editora Fiel, 2010.
HENRY, Matthew. Comentário Bíblico de Matthew Henry. Rio de Janeiro: CPAD, 2005.
LLOYD-JONES, D. Martyn. O Sermão do Monte. São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2004.
BÍBLIA. Bíblia King James Atualizada. Tradução João Ferreira de Almeida. 1. Ed. São Paulo: Abba Press, 2011.
[1] Pastor auxiliar da Igreja Batista Missionária El-Shaday. Casado com Macrina Lima e pai de Letícia Lima. É Bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico Batista Nacional (SETEBAN-PE). Bacharel em Administração de Empresas pelo Centro Universitário Maurício de Nassau (UniNassau). Pós-Graduado em Pregação Expositiva pelo Seminário Teológico Batista Nacional de Pernambuco (SETEBAN-PE) e atualmente é Mestrando em Estudos Históricos-Teológicos pelo Centro Presbiteriano Andrew Jumper (CPAJ).
